Héracles talvez seja o herói da mitologia clássica mais conhecido universalmente, e um daqueles que, desde a Antiguidade, tiveram mais fortuna entre os artista. Chamado Hércules pelos romanos, sua vida e as lendas que a compõem não são um mito em sentido estrito, mas, como diria Pierre Grimal, um ciclo heróico. O mito pressupõe uma visão do universo, da vida, e tem uma dimensão religiosa que a figura de Héracles não oferece. Já um ciclo heróico é caracterizado por histórias "cuja única unidade é fornecida pela identidade do personagem que é seu herói principal". As mais célebres de suas incontáveis aventuras são aquelas que, ao longo do tempo e por obra dos mitógrafos gregos desde a época pré-helenística até o fim da Antiguidade, ganharam o título de "Os doze trabalhos de Héracles".
Segundo Homero, Héracles era filho de Zeus e de Alcmene, esposa de Anfitrião. Aproveitando-se da ausência deste último, o deus assumiu a aparência dele e dormiu com a mulher. Assim nasceu o semideus, dotado de uma força incomparável e de um caráter colérico. Assim como em relação a todas as amantes de Zeus e aos respectivos filhos, Hera (Juno) alimentará rancor também contra Héracles, que deverá sofrer suas perseguições. Num momento de loucura suscitado pela deusa, Héracles mata os três filhos do rei de Tebas. O oráculo de Delfos estabelece que o herói, para expiar sua culpa, deve colocar-se a serviço de Euristeu, rei de Tirinto, que lhe impõe os famosos doze trabalhos. Assim, Héracles deve enfrentar o Leão de Neméia, animal de dimensões e ferocidade extraordinárias, livrar os arredores de Lerna da terrível Hidra, serpente de nove cabeças, ou capturar Cérbero, o cão de cem cabeças, guardião do Hades, o reino dos mortos.
Os trabalhos de Héracles, assim como outras lendas ligadas ao herói, são figurados já desde o século VII a.C., quando surge na cerâmica grega a técnica da decoração em figuras negras. Nesse e em todo o século seguinte, e ainda depois, as divindades e os heróis são representados em figuras negras e contornos entalhados contra o fundo alaranjado da argila, em composições quase seguramente inspiradas em obras pictóricas (madeira e afrescos) que se perderam, mas cuja existência é atestada pelas fontes literárias.
Entre os muitos exemplos, destacam-se uma ânfora ática do século VI a.C. com a Disputa pela Corça de Cerinia entre Héracles, Apolo e Ártemis, sob olhar de AtenaI (Museu do Vaticano) e duas ânforas do início do século V a.C. (Paris, Museu do Louvre) que mostram Hércules golpeando a Hidra de Lerna com um machado e Hércules luta contra as aves Estinfálidas. Nestes dois exemplos, são bem visíveis os atributos tradicionais do herói: a pele de leão (a do leão de Neméia) e a clava. Ás vezes, semideus também é representado com uma espada, presente de Hermes (Mercúrio), ou com arco e flechas, dados pelo deus Apolo.
Na segunda metado do século VI a.C., aparecem também os primeiros vasos de figuras vermelhas, que têm contornos negros no interior e se recortam sobre fundo negro. Com essa técnica, durante cerca de um século os ceramistas não só realizam o escorço das figuras, mas também mostram a profundidade espacial e a expressão psicológica dos personagens. Entre os exemplos mais importantes desse estilo aplicado á figura de Héracles, citemos a cratera em cálice (vaso de grandes dimensões, no qual se misturavam o vinho e a água servidos nos banquetes) de c. 510 a.C., do ceramista Eufrônio, com a representação da luta entre Héracles e Anteu, e o canjirão com a cena de O jovem Hércules estrangulando as serpentes, de c. 480 a.C. (Paris, Museu do Louvre).
Também são muitas as representações de Héracles na estatuária antiga. Entre os exemplos mais interessantes, há dois: o Hércules Lansdowne (Malibu, P. Getty Foundation) e o Hércules de Farnese, proveniente das Termas de Caracala (Museu Arqueológico Nacional, Nápoles), ambos do século IV a.C., e nos quais o herói exibe a clava e a pele de leão, símbolos de sua força e dos seus trabalhos. Não faltam os exemplos de mosaicos grecos-romanos ou de arte etrusca que têm como tema as gestas dele.
As figuras de Héracles se mantêm como um tema preferido pelos artistas e pelos respectivos clientes até os primeiros séculos da era cristã, para depois desaparecer do horizonte artístico, junto com os outros temas da mitológica, no decorrer dos séculos seguintes. Uma de suas representações tardias na arte antiga é a da pintura parietal do século I d.C. proveniente de Herculano, com Hércules estrangulando as serpentes, hoje guardada no Museu Arqueológico Nacional, Nápoles.
Como outros heróis e deuses da mitologia clássica, Héracles reaparecerá na arte durante o século XV, em Florença (Renascimento). O escultor e pintor Antonio Del Pollaiolo foi um dos primeiros, na era moderna, a utilizar temas exclusivamente mitológicos. Por volta de 1460 ele pintou, a pedido de Lourenço o Magnífico, três grandes telas sobre os trabalhos de Hércules, as quais infelizmente se perderam. Duas madeirinhas de Pollaiolo com Hércules e Hidra e Hércules e Anteu (Florença, Galleria degli Uffizi) são consideradas evocações dessas obras. Nelas, já não vemos o linearismo e a bicromia das representações dos vasos antigos, mas uma restituição clássica, decididamente anatômica, das figuras, além de um chamamento ás poderosas figuras masculinas da estatuária antiga, que estava sendo redescoberta justamente no decorrer do século XV. As cenas são impregnadas de energia, graças às nervosas linhas de contorno que compõem a figura de Héracles e as dos seus adversários. Em Hércules e a Hidra, a pele de leão se infla com o enérgico salto do herói para a frente e a ponta do manto descreve uma curva, assim como os longos pescoços da Hidra e sua cauda que se enrola a uma perna de Héracles. Além disso, as cenas não se recortam mais sobre um fundo monocromático, abstrato, mas sobre uma paisagem a perder de vista, conquista da pintura flamenga e dos estudos sobre a perspectiva.
Já então visto como a encarnação do bem que triunfa sobre o mal, segundo a interpretação neoplatônica da lenda, Héracles torna-se mais uma vez um assunto popular, destinado a perdurar. O mesmo Pollaiolo representa Hércules e Anteu num pequeno bronze de c. 1475 (Florença, Museu Del Bargello). Vincenzo de'Rossi, escultor florentino do século XVI, dá sua versão do tem num grupo escultórico que hoje se encontra no Palazzo Vecchio, em Florença; em 1599, Giambologna realiza, sempre por encomenda florentina, o grupo marmóreo com Hércules e o centauro Nessus.
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Hércules estrangulando o leão de Neméia, Peter Paul Rubens, 1638-1639 |
Alguns anos mais tarde, Rubens pinta Héracles estrangulando o leão de Neméia (Bucareste, Museu Nacional de Arte Romena) e Héracles no jardim das Hespérides (Turim, Galleria Sabauda); o pintor espanhol Francisco de Zurbarán fornece, em Hércules e Cérbero (Madri, Museu do Prado), uma versão tenebrosa do episódio no qual o herói enfrenta o cão guardião do reino dos mortos. Mais tarde, nos primeiros anos do século XIX, o escultor Antonio Canova explora o tema da cólera de Héracles executando um grupo escultórico de grande dramaticidade, no qual mostra o herói arremessando no ar seu amigo Licas (Possagno, Gipsoteca Canoviana). Uma versão entre o fantástico e o fantasmagórico de um episódio da vida do herói nos é dada por Héracles e a Hidra de Lerna, de Gustave Moreau. Seria errôneo, contudo, atribuir a popularidade do herói entre os artistas exclusivamente ao aspecto simbólico do bem que triunfa sobre o mal. Talvez, mais do que qualquer outra coisa, os artistas sejam atraídos pelo caráter dramático e exasperado de suas aventuras.
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Héracles e a Hidra de Lerna, de Gustave Moreau - 1876 |